De Nashville à Toscana

Annie era uma mulher vibrante, alegre, de sorriso fácil, daquelas que todo dia passa e rouba uma das maçãs nas barracas de fruta do mercadinho do Sr Rhavi, um indiano que havia deixado há muitos anos, Bombaim, sua agitada terra natal, hoje chamada de Mumbai, e mudado para a pacata região da Toscana, em especial a cidade de San Geminiano. Todo dia ela faz isso, ele já a conhece, sempre dá um grito, como aprendeu com os italianos: - Ragazza birichina!! Porca Miséria!! Mas depois abre um sorriso porque lembra que aos sábados pela manhã ela sempre faz a feira e paga por cada maçã "roubada" e ainda dá uma boa gorjeta. Annie é daquelas que brinca com todo mundo, que faz piada de tudo e até os rapazes tem receio de dar um cantada pra não sair com "um quente e dois fervendo". A não ser o mais atrevidos como foi o caso de uma vez, quando ela passou na cafeteria e pediu um café preto pra viagem, daqueles tipo americanos que vem em copo grande fechado. Um gajo, metido à esperto, perto de outros rapazes, resolveu fazer uma pergunta pra deixá-la sem graça.
- Olá ragazza! Seu carro tem porta copos? Ou vai pôr no meio das pernas?
Riu desaforadamente junto com seus comparsas. Mas Annie não levava desaforo pra casa, e não trocava de roupa pra dar uma resposta à altura. Assim ela fez, abriu um sorriso debochado e mandou:
- Com um preto, grande e quente ainda pergunta onde vou colocar? E virou às costas deixando o rapaz levar tapas na cabeça dos outros amigos e ser achincalhado. Por essas e outras muitos apenas a admiravam de longe, sem coragem para se aproximar.

Annie era uma apaixonada por livros. Assim que saiu da faculdade montou um clube do livro com menos de meia dúzia de amigas e hoje administra uma livraria que tem um programa de empréstimos de livros como uma biblioteca. Até porque a cidade não tem. A biblioteca mais próxima é a famosa Biblioteca Nazionale Centrale de Firenzi, em Florença, a 58km de distância. O seu catálogo é bem diversificado e possui um número bem satisfatório de exemplares. Seus últimos exemplares adquiridos foi a coleção de 50 Tons de Cinza, de Liberdade, e o último 50 Tons Mais Escuros. Apesar da cidade ser bem pacata, de famílias tradicionais, sobretudo católicas, haviam algumas mulheres que viviam suas vidas paralelas, escondidas, fantasiadas, pelas vielas de pedra nas noites da cidade. E a maioria dessas mulheres confiavam seus segredos à amiga Annie. Uma delas era Norah. Uma viúva de um cineasta americano, que filmou uma película na Toscana e se apaixonou pelo lugar. Disse à sua esposa que quando se aposentassem iriam passar o seus últimos dias em meios aos intermináveis girassóis das fazendas da Toscana. Mas seis meses depois de chegar foi acometido de uma doença rara e fatal. Morreu nos braços da esposa dizendo ter vivido tudo que sonhou. Seja na fantasia das telas de Hollywood até terminar a vida onde queria e nos braços da amada. Quem poderia querer algo melhor?!

Após a morte o esposo, Norah adquiriu um hábito não tão peculiar para aquela pacata cidade do interior. Gostava de usar vestidos abotoados de cima à baixo, normalmente estampados, e chapéus. Mas seu alvo eram os rapazes turistas que passavam quase todos os dias pela cidade. Norah sentava na mesa de uma sorveteria, lugar de onde a predadora espreitava suas presas. Por vezes Annie passava pela pitoresca praça central da cidade e via Norah sentada na mesa da mais famosa esquina do centro, distribuindo charme, com seu chapéu largo e sua leitura obrigatória. Annie olhava, sorria pra si mesma, e seguia com seu compromisso.

No inverno daquele ano a cidade estaria recebendo o Festival de Inverno. Era um grande festival de artes com teatro, dança e música onde artistas do mundo inteiro iam para a Toscana, tendo como anfitrião, seu filho mais famoso - Andrea Bocelli. Ele era o idealizador do festival que estava na segunda edição. Palcos ao ar livre eram montados em diversas cidades, e os artistas faziam rodízios em todas as cidades do circuito, cada tendo a oportunidade de se apresentar em cada uma das cidades. Não era nem preciso ir para outra cidade, o artista que se apresentava em Siena logo logo estaria em San Geminiano. O festival era um sucesso e gerava muita riqueza cultural e financeira para a região.

Foi em uma dessas apresentações que Annie conheceu o professor de uma companhia de dança. Chip era um americano de Nashville que ensinava um tipo de dança cultural muito comum em áreas rurais, era um tipo de dança country. Uma dança muito vibrante e alegre, e os expectadores tinham vontade de acompanhar os passos com palmas, quase saltando de suas cadeiras. Annie era apaixonada por dança e vibrou com a apresentação do grupo. Mas quando o professor subiu no palco e dançou na frente dos outros dançarinos, como um valete, ela não conseguiu tirar os olhos dele. Seus movimentos eram leves mas virís, parecia que ele flutuava no palco, não como aqueles dançarinos de ballet que apesar de lindos não chamava atenção dela. Mas com ele era diferente, era leve como uma pluma mas ao mesmo tempo parecia um cowboy americano de mãos grossas de criar cavalos e bois.
No intervalo das apresentações muitos iam para as barraquinhas de comes e bebes que ficavam ao lado do palco. Os comerciantes locais aproveitavam para ganhar um bom dinheiro com o grande número de pessoas que vinham para o Festival oferecendo comidas típicas, bebidas, sobremesas e tudo que se pode imaginar. Uma dessas barracas oferecia casinhas feitas de pedra e bonecos de madeira feitos com pequenos galhos de árvores. Onde os galhos se dividem em dois, formando uma forquilha, eles entalhavam um pequeno boneco que eles chamam de gnomos. Nessa barraca trabalhavam Doris e Fred, um casal muito sombrio. Vestiam-se de preto, inclusive com capas com capuz, com tecido vermelho e purpura por dentro. Ela vestia o de vermelho e ele o de purpura por dentro. Olhos muito pintados, ela com maquiagem bem forte nos olhos, ambos com unhas pintadas de preto. Realmente um casal bem sombrio.

Chip se dirigiu à barraca de bebidas, pediu uma Amarula, um licor muito conhecido da África que seu sabor lembra nozes, amêndoas, avelã e baunilha. Quando Annie viu que ele parou naquela barraca sentiu a oportunidade se abrir para chegar até ele. Nem precisou de muita coragem porque ela ja tinha suficiente. Num pulo ela já estava de passos rápidos em direção ao Chip.

- Olá, meu nome é Annie. Com um grande sorriso, estendeu a mão para cumprimentá-lo. - Adorei a apresentação do seu grupo. Que dança mais envolvente!!
- Muito prazer, Chip, a seu dispôr. Apertando a mão dela e com a outra mão tirando seu chapéu. - Que bom que gostou, ensaiamos muito pra fazer bonito. Na nossa cidade essa dança é feita nos salões. muita gente participa dos nosso Festivais Countries, lá chamamos de Festa de Rodeio ou Festa do Peão.
- Que interessante! O que são exatamente rodeio e peão? Desculpe a ignorância.
- Sem problema, faz parte de nossa cultura, bem diferente da cultura da Europa. Rodeio é o lugar onde há apresentações de homens montando cavalos e touros.
- Ah! Isso eu ja vi sim
- Pois é, e peão é nome dado ao cara que monta esses animais.
- Puxa que legal! Não sabia dos nomes, mas os personagens eu já conhecia. Você também é um peão ou só dançarino?
- Na verdade sou professor de dança sim, mas na minha cidade adestro cavalos numa técnica que chamamos de Encantamento.
-;Ah eu já ouvi falar sim, é como ler os sinais do animal, principalmente pelas orelhas não é? até que ele fique à vontade e vá até você.
- Olha, você conhece mesmo. É isso mesmo. Não domamos mais os animais pela forca, mas pelo respeito e companheirismo.

O papo fluiu a noite toda, riram muito das coisas que ela não sabia da América e nem ele sabia da Europa. Ela lia muito e conhecia como ninguém a história do povo europeu. Annie o convidou para conhecer um pouco do centro histórico da cidade. O lugar era encantador e bastante diferente da América. Chip estava encantado com a cidade, achando diferente o espaço apertado para tudo, visto que na sua cidade tudo era muito espaçoso. E também a iluminação muito baixa, tudo muito escuro. Ficou pensando se uma mulher sozinha tinha coragem de andar por aquelas vielas escuras, cercadas por paredes altas. Chip estava encantado com a esperteza de Annie. Sabia que ela queria algo a mais, mas ele também sabia que iria embora logo logo e não era do seu feitio as aventuras descompromissadas.
Chip, de forma bem elegante chamou-a para a praça onde estavam o maior número de pessoas e lá se despediu dela.
Annie estava encantada com a fineza e robustez ao mesmo tempo em um homem só. Foi para sua cama, mas não conseguia dormir pensando naquele sorriso grande que ele tinha, na visão de mundo, no mundo diferente que ele mostrara a ela. O Festival ainda duraria toda a semana, e ela sabia que teria tempo conhecer um pouco mais daquele homem. Mas ela sabia que teria de ser mais convincente.

No dia seguinte ela fechou a livraria um pouquinho mais cedo, se arrumou com um vestido branco curto, com um cinto fino vermelho e um lindo sapato de salto vermelho furadinho perto do calcanhar e na ponta. Ela tinha ombros largos e pernas grossas, e quando chegou na praça não foi difícil de se despontar em meio às outras mulheres. Chip a viu de longe e também abriu um sorriso. Ela realmente estava linda. Chip sabia que em breve voltaria para sua terra natal e não queria deixar aquela mulher sofrendo, apaixonada, mesmo ela dizendo que não se apaixona com facilidade e também ele sabia que facilmente se alaixonaria por ela.
Quando ela estava chegando perto dele ele pediu ao rapaz da barraca um licor de Amarula, como havia pedido na noite anterior. Mas ela levantou a mão e cancelou o pedido.
- Não, não não… Amarula de novo não. Hoje você vai conhecer a bebida mais famosa da Itália - o Limoncello. Um licor de limão produzido originalmente no sul da Itália, especialmente na região de Nápoles, na Sicília e na Sardenha. É feito à base de limão, álcool, água e açúcar. Deve ser mantido no congelador e, consequentemente, bebido bem gelado. É quase uma versão da caipinhinha brasileira.
- Dois, por favor, Paolo. Continuou ela, que jé era conhecida do rapaz da barraca.
- Então você vai fazer eu me apaixonar por outra bebida?
- Sim com certeza. Você levará excelentes recordações da Itália. Dormiu bem?
- Sim dormi. Acordei cedo e fui em busca de um teatro aqui na Toscana, ao ar livre, o Teatro del Silenzio.
- Ah sim, o teatro que Andrea Bocelli pediu que a cidade de Lajatico construísse.
- Sim, o teatro usa a acústica natural das montanhas. Fiquei encantado!

A bebida chegou e ambos brindaram e tomaram. Chip arregalou os olhos e Annie abriu um enorme sorriso. Depois de algum tempo sentados juntos, ela com os braços em volta do braço dele, segurando-o enquanto assistiam os concertos (aquela noite era da música). Ela recostou em seu ombro, sentindo o perfume agradável que Chip usava. Ele, em contra-partida, pensava: Meu Deus, ela é linda, mas eu não posso ficar com ela. Ela tem uma história nesse lugar, tem sua família, seu trabalho, eu vou embora em pouco tempo, o que será de nós? Os concertos entraram noite à dentro, e cada vez mais os dois estavam envolvidos. Se beijaram, e num minuto depois estavam em um outro lugar sozinhos e se amando. Foi como se a noite se multiplicasse por várias, como se aquele lugar se transformasse em vários outros lugares onde eles se amariam. A mente dos dois imaginavam todos os lugares possíveis e impossíveis. Era como se vivessem aquele momento várias e várias vezes.

Chegou o dia da partida. Annie preparou algumas lembranças para Chip levar e no meio das coisas uma carta onde dizia:

"Pedi pra Deus abençoar sua vida, não pense que eu quero mal pra você, muito pelo contrário to aqui na torcida. Que você viaje o mundo com sua dança e sua arte, que conheçam um pouco de tudo, que tenha pôr do sol, banho de chuva e vento na cara. Faz amor no meio da estrada, no banheiro do avião, nos hotéis, eu te desejo tudo isso e muito mais, muito mais. Mas saiba disso: Amar é deixar ir, é saber sair de cena, é ficar longe pra não te causar nenhum problema. Amar é deixar ir! Te desejo todo o bem.
Ah, e que você tenha uma boa memória só para lembrar que comigo iria ser bem melhor.
Beijos pra sempre.
Annie"

Ele leu a carta sentado na cadeira do avião enquanto olhava pela janela, vendo o avião decolar do aeroporto de Firenzi. Sabia que nunca mais veria Annie, mas sabia também que aquela mulher risonha, divertida, alegre, cheia de vida, nunca mais seria esquecida por ele. So deseja a ela a mesma felicidade que ela desejou a ele.

Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

DIGA NAO ÀS DROGAS E SIM A UM CHEIRO NO CANGOTE

Uma reflexão no Dia de Finados

O Pássaro Colorido