Chá das Cinco

Era uma tarde fria e chuvosa nos arredores da bela e Lúgubre Londres. O inverno estava agonizando seu fim, mas ainda tinha forças suficientes para castigar o lugar com seu sopro gélido. As mãos do homem, mesmo protegida pelas luvas, estavam guardadas dentro dos bolsos do casaco de tecido grosso por fora e de pele quente por dentro, pele essa que contornava a cabeça dentro do capuz. Ele estava em pé, encostado em uma das pilastras de ferro da Finchley Road Station.

O vento soprava frio e cortante como uma navalha no rosto daquele homem. A chuva era leve, a noite começava a avisar que estava chegando. Transeuntes iam e vinham, subiam e desciam as escadas daquela estação diferente das outras por que não era underground, é uma estação na superfície. Ele olhava a multidão, pensava em quantas histórias estavam passando por ali, naquele exato momento. Alguns vindo do trabalho, outros de passeios no Hampstead Heath Park, que não fica muito distante, e outros ainda como os milhares de turistas que perambulam a capital de norte a sul, leste a oeste.

Uma mulher com um adesivo na bolsa denunciava sua profissão de psicóloga, ela havia acabado de visitar a Casa de Freud, o pai da Psicanálise. Tinha nas mãos um livro e alguns panfletos do Museu com a famosa foto preto e branco de Freud. Ela era alta, cabelos na altura dos ombros, com cor entre o castanho e louro escuro. Os olhos verdes, ligeiramente escondidos pelos óculos corriam as páginas de um livro cuja capa estava escondida pela bolsa. Pernas cruzadas, saindo para fora do sobretudo, apontavam para o bom gosto na escolha do sapato alto. Era a típica mulher com ar inteligente, que põe medo em homens inseguros, afasta os que gostam de um assédio pobre, mas que, como um imã, atrai os inteligentes, os lords, os que têm conteúdo e sabem o que dizer e quando dizer.

O homem se aproxima e pergunta: 
- O que achou da mesa e do divã do seu avô? A mulher responde com outra pergunta:
- Excuse me?!
- Da casa de Freud, O que achou?
- Ah sim, interessante e bastante simbólico pra nós, eternos estudantes apaixonados pelo mecanismo do inconsciente.
- Sim, Anna Freud deixou muitas coisas do Pai para que pudéssemos conhecer
- É verdade, quando entramos na casa, é como se o lugar fosse nosso, há um sentimento de pertencimento ali, como se, de alguma forma, já conhecêssemos o lugar. Mas espere, como sabe que estive lá?
- Na sua bolsa está o adesivo que ganhamos quando visitamos o lugar, e você está segurando os panfletos que ficam à disposição na mesa de entrada.
- Observador você! Psicólogo também?
- Não, apenas um outro apaixonado pelo mecanismo mental
A mulher esboça um pequeno sorriso
- Posso? Pergunta o homem apontando gentilmente para o lugar ao lado dela no banco. Ela ainda mais surpresa (porque ele poderia sentar mesmo sem pedir) reponde:
- Por favor! Você é londrino? Pergunta ela, se ajeitando no banco, virando o corpo pra ficar mais de frente pra ele.
- Parisiense, Jacques. Ravi des vous rencontrer (Muito prazer)
O homem tira a mão de dentro do bolso para cumprimentá-la
- Humm, como Lacan? C'est mon plesir. Cumprimenta-o, com uma mão, enquanto a outra fecha o livro que estava lendo.
- "O desejo enquanto real não é da ordem da palavra e sim do ato"
A mulher, profunda interessada nos estudos dos seminários de Lacan, reconhece a frase do mestre. Muito interessada, atenta e surpresa com a resposta, imagina ser o homem, mais que apenas um apaixonado pela psicologia, talvez um professor universitário na área das humanas, ou algo parecido, mesmo ele tendo fugido da pergunta, o que desperta nela uma tremenda curiosidade.
- Então, O que faz um parisiense apaixonado pela mente humana, nas terras da Rainha?
- Tenho um pequeno bistrô de pães franceses e chás
O homem tira do bolso interno do casaco, um elegante cartão de visita, escrito Chez Nous (Nossa Casa), e entrega à mulher.
- Você é minha convidada para um café da manhã, ou um Chá das 5, amanhã. Terei imenso prazer em recebê-la.

O homem se levanta no mesmo momento em que o trem em direção a Camdem Town pára na estação. Com um pequeno sorriso de canto de boca e um olhar terno, se despede da mulher.
Ela ainda meio sem entender aquele enigmático ser, estende a mão pra tentar tocá-lo pra se despedir mas já era tarde, ele se distanciara em direção à porta do metrô. Quase que no mesmo instante o trem dela também chega.

Minutos mais tarde a mulher chega em casa, coloca seu sobretudo no armário de casacos ao lado da porta, segue em direção à sala já tirando a bolsa do ombro e pendurando nas costas da cadeira da mesa de jantar. Quase que se joga em seu grande e confortável sofá meio que deitando-se nele. Em uma mão está o celular e na outra o bonito cartão do homem. Abre o GoogleMaps e digita o nome Chez Nous, logo aparece fotos do bistrô, e para sua surpresa, ficava próximo à sua residência. As fotos eram de um lugar elegante e charmoso, só de ver as fotos se sentiu mais uma vez convidada.

Às 17h, impreterivelmente, justificando a pontualidade britânica, lá estava ela. Chegou e já se sentou numa pequena mesa próxima à janela florida por fora. Da sua cadeira ela correu os olhos por toda a loja, admirando o charme daquele lugar. Atrás do balcão a parede era toda dividida em quadrados de madeira, preenchidos por caixas de chá, em uma outra parede, haviam prateleiras com vidros médios transparentes, cheios de folhas de ervas desidratadas. Cada vidro com um chá diferente. Em cima do balcão haviam coleções de conjuntos de chá, um mais bonito que o outro. Xícaras de porcelana, algumas pareciam porcelana japonesa, cheias de desenhos lindos, ricos em detalhes.

Jacques, estava vestido como um padeiro português, com um avental, uma caneta por trás da orelha e um pequeno pano de prato no ombro, que ele usava para limpar as mãos. De longe ele viu quando Marie entrou, sentou e admirou a loja, mas ele não quis interromper aquele momento dela. Preparou uma cesta com pequenos pães franceses e alguns croissants.
Montou uma linda bandeja de madeira, ornada com tecido de chita florido, com um conjunto de chá de porcelana dos mais lindos da loja.
Marie, estava se sentindo a própria rainha da Inglaterra naquele chá das cinco. Jaques vestia um par de luvas que ela achou contrastante com sua roupa, mas estava muito bonito.

- Bon après-midi chère, bienvenue chez nous
Ele comprimenta-a com o tradicional Boa tarde e seja bem vinda, em francês.
- Obrigada, sua casa é muito charmosa, parece um pedacinho de Paris, dentro de Londres.
- Minha casa? Não. Chez Nous. Corrigindo-a dizendo que a casa era nossa. - Preparei pra você um delicioso chá de hibisco ao leite, para ser tomado acompanhado por essas pequenas torradas doces, esses pães e um delicioso croissant.
- Hum, parece estar delicioso.

Ficaram ali por horas conversando, e não viram a noite cair. Marie soube que a mãe de Jacques era uma renomada psicóloga na França, o pai era um português dono de uma padaria em Lion, onde seus pais se conheceram. Marie também soube que ele, Jacques, era um homem culto, mas solitário. Sonhava em encontrar uma mulher inteligente, bonita, por quem valeria oferecer seu precioso tempo. Encontrou em Marie a mulher que ele sempre sonhara, parecida com mãe (não era de se esperar nada diferente, ainda mais vindo de pessoas tão próxima à Freud).

No inverno seguinte Marie foi visitar Paris, pra conhecer os pais de Jacques. Em pé na frente da grande janela da sala, que se estendia desde 30 cm do piso até quase o teto, ela olhava a neve caindo do lado de fora. Ao longe podia se ver a Torre Eiffel. Jacques abraça-a por trás e no ouvido dela ele sussurra:
- Feliz Mon Cher?
- Como sempre sonhei, querido.

Ficaram ali abraçados olhando a neve cair e lembrando do inverno passado na longínqua Finchley Road Station.

Comentários

  1. Perfeitooo♥️ 👏👏👏👏

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  2. Humm, Amei este pequeno e adorável conto!

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  3. Amei a leitura deste pequeno e adorável conto!

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  4. Humm, Amei este pequeno e adorável conto!

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  5. Humm, Amei este pequeno e adorável conto!

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  6. Olha!! Dá para continuar, faz desse conto um livro. Prendeu minha atenção, li até o final rsrs muito bem escrito e a forma como descreve os detalhes me lembra escritores famosos. Amei. Obrigada pela lembrança.♥️

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    1. Obrigado pela leitura. Vontade tenho sim de transformar em um romance. Quem sabe!!

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  7. Também amei!!! Já quero livro♥️

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  8. Gostei da sua forma de escrever... a forma do seu olhar...me senti na estação e Casa de Chá...parabéns

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  9. Que perfeição, em cada detalhe. 😍

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  10. Querido amigo, que conto maravilhoso! A prosódia do romance entre Jacques e Marie é extremamente envolvente. Ansiosa por ler outros.

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    1. Obrigado querida amiga. Que bom que gostou. Tem contos novos.

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  11. Belíssima,palavras de um verdadeiro romântico envolvente, parabéns!!!

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